quinta-feira, julho 17, 2014

Mancha

Lembra aquela minha camisa branca com a estampa de uma fotografia em preto e branco na frente? Uma que já tava ficando velha e gasta, mas que eu insistia em usar mesmo assim? Pois é. Hoje resolvi colocar ela pra ferver um pouco e depois passar um sabão, pra ver se tirava uma mancha. Bem, depois de tanto tempo fervendo, o tecido da camisa ficou tão fraco que rasgou, entre a manga e a gola. Assim, do nada. Justo a camisa da nossa melhor noite juntos. Lembra? Aquela em que a gente foi pro cinema “ver” uns filmes e depois pra um bar... aí tu puxou tanto a gola pra beijar o meu pescoço que por um momento eu achei que a camisa iria rasgar (o que acabou acontecendo) e me preocupei, mas logo parei de me importar. Enfim, espero que lembre.
Gostava muito daquela camisa, sabe? E nem consegui me despedir direito dela. Estava evitando usar ela há semanas... desde o dia em que tu me deixou. O engraçado é que, mesmo depois de rasgada, a mancha da camisa continuava lá, insistente. Às vezes eu queria que as lembranças do tempo que a gente passou juntos fossem assim tão frágeis. Não que eu quisesse te esquecer completamente, te apagar da memória. Não, isso seria brutal e insensível. Sem falar que eu acho que consigo ter certa gratidão pelos momentos felizes. Mas às vezes dói tanto... sabe? Deve saber. Dói como uma ferida que teima em não cicatrizar direito, velha, tão velha que se deixa esquecer por uns tempos.
São tantas as coisas que parecem carregadas da tua presença, como uma mancha, uma marca invisível, e em cada uma delas uma lembrança em potencial que me vem à mente sem aviso ou permissão. Um segundo e eu já estou preso num emaranhado de devaneios e lembranças indesejadas.
Tive até que mudar as músicas que me acompanham todos os dias. Sabe aquela música dos Stones que tu gostava? Nunca mais ouvi. Também nunca mais vi aquele filme que a gente adora (já adorava mesmo antes de se conhecer) e combinou de assistir juntos algum dia. Obviamente eu não posso atear fogo em todas as camisas que eu lembro de ter usado quando a gente estava juntos. Ou impedir que as mulheres com que tem o cabelo parecido com o teu parem de andar pelas ruas (de onde todas elas surgiram?). Ou pedir pras tuas amigas (que são só tuas, eu descobri) pararem de esbarrar comigo por aí. Ou fazer com que parem de mencionar aquela série que tu gostava sem eu entender direito o porquê. Ou parar de passar na frente daquele restaurante onde a gente almoçou uma vez. Todas essas coisas se tornaram manchadas, com memórias de tempos felizes que eu deveria ter prazer em lembrar, mas que agora têm um gosto agridoce, que parece ficar mais amargo a cada dia. Talvez eu até me recorde deles com um sorriso mais tarde, mas essa realidade ainda me parece distante.
Lembra aquele filme que eu te recomendei e te fez chorar? Pois é, agora sou eu que choro. Quer dizer, não choro mais... mas a dor persiste, como se uma lágrima se fixasse em meu rosto e eu não conseguisse limpá-la. Pelo menos não por enquanto. Provavelmente ela vai persistir enquanto eu não me esquecer do quanto teus olhos brilhavam de felicidade quando eu olhava eles bem de pertinho, o quanto eram lindos. Por sorte, nunca mais senti o cheiro doce do teu perfume, que eu gostava tanto, e até consegui me esquecer dele. Quer dizer, ele não me vem à cabeça, mas sei que reconheceria ele em um segundo se chegasse perto de tu de novo. Mas isso não vai acontecer.

Então por favor, na próxima vez que a gente se ver, não esteja usando aquele vestido preto florido. O que tu tava usando na primeira vez que a gente foi pro cinema juntos. Sabe qual é, né? É o que eu me lembro melhor. Tu costumava ficar linda nele. Provavelmente ainda fica. Mas não pra mim.

quarta-feira, fevereiro 27, 2013

A Embriaguez do Sucesso e o Jornalismo FDP

Por baixo dos panos e das aparências, a Nova Iorque do final dos anos 50 onde A Embriaguez do Sucesso (Alexander Mackendrick, 1957) se passa é uma Nova Iorque sórdida, mascarada, fria. Uma cidade de filme noir. Entre um bar de jazz coberto pela fumaça dos cigarros e outro, os habitantes que nela habitam parecem ser mesquinhos, corruptos e gananciosos. Por trás dos holofotes e das luzes da Broadway, sempre parece haver uma sujeira, um segredo a ser descoberto, uma briga.


É nesse ambiente que vivem os personagens principais do filme, Sidney e JJ. As designações do emprego dos dois (principalmente de Sidney) variam entre ‘jornalista’, ‘publicitário’, ‘assessor de imprensa’ e ‘colunista’, mas o fato é que JJ tem uma coluna própria num dos principais jornais de Nova Iorque, e Sidney fornece a ele notas sobre seus clientes. Sua coluna é lida todos os dias por 60 milhões de leitores ao redor do mundo. Os caminhões que levam os pacotes de jornais todos os dias carregam o mote ‘Vá com o Globo – Leia JJ Hunsecker, Os Olhos da Broadway’. Os olhos de JJ parecem estar sempre em destaque, vigiando todos os lugares, sempre à procura de mais um furo, mais um escândalo a ser impresso, mais um elogio a ser feito à pessoa certa. Num tempo sem internet ou televisão, em que o jornal impresso só tinha o rádio-jornal como competidor entre os meios de comunicação, um homem como JJ era um deus. Ele podia “dizer a presidentes o que fazer”, como diz Sidney. 


Logo nos primeiros minutos de filme, um cliente de Sidney já deixa claro que o paga para que ele invente mentiras – a serem publicadas por JJ – que sempre parece estar coberto ou mascarado por alguma sombra. Sidney é um mentiroso a nível profissional e “pessoal”, que faz isso por dinheiro e pelo bel prazer de mentir, ou de contar meias-verdades. Afinal, a manipulação da informação (a cargo de quem escreve) sempre esteve presente no jornalismo. Nada que não aconteça em qualquer redação a qualquer momento. Não é um publicitário ambicioso como Sidney que vai abdicar do hábito de mentir por uma noção equivocada de consciência. Sidney, como o jornalista aproveitador Charles Tatum de A Montanha dos Sete Abutres (Billy Wilder, 1951) aprendeu logo cedo que enganar e desconsiderar o leitor/telespectador é o melhor negócio. Entretanto, os dois personagens parecem viver realidades bem distintas. O modo como Tatum consegue burlar os jornais – os rivais e até o próprio – e manipula sua fonte de notícias é cômico, beirando o surreal, a rapidez com que se forma todo um complexo ao redor da Montanha chega a ser exagerada, e Tatum parece mais perverso e inconsequente – pelo menos durante a maior parte do filme. Sidney não deixa de tecer sua teia e organizar suas armadilhas e jogos de mentiras aqui e ali, mas parece sempre à mercê de JJ, e ele é mais mesquinho e egoísta – chegando ao ponto de parecer atormentado – do que propriamente perverso. De fato, A Montanha como um todo parece mais maniqueísta e exagerado que Embriaguez, um filme que parece transitar sempre entre sombras.


Se ele realmente gosta de escrever para os jornais é questionável, pois joga jornais no lixo a qualquer momento, não importando sua sorte. O que ele quer é chegar ao topo, ao sucesso – ou seja, ter uma coluna só sua -, não que pra isso ele tenha que enganar, extorquir, chantagear, se envolver em espancamentos, plantar informações falsas. Sua referência, seu guia, seu objeto de admiração – misturada ao ódio -, é JJ. Infelizmente não há uma única figura em seu meio em quem ele possa se ancorar, talvez tomar como exemplo de integridade (“um pacote de fogos de artifício esperando um fósforo”). Os outros dois colunistas que aparecem no filme, apesar de deixarem claro que odeiam JJ, são iguais ou piores que ele. Parecem odiar o sucesso obtido por ele, não sua conduta. 


Enfim, a verdade é que eu poderia fazer uma cartilha enorme listando todos os preceitos e normas de condutas do jornalismo respeitável que Sidney e JJ quebram no filme, mas isso seria chato, e eu não conheço tantas normas de conduta assim. Comportamentos à parte, é delicioso assistir Burt Lancaster e Tony Curtis sendo tão podres e mesquinhos - enquanto olho nos olhos dos dois mais uma vez para descobrir se eles realmente queriam dizer os absurdos que dizem. Ou vê-los se traindo e se reconciliando, trocando farpas e acusações a cada cena que passa. Não parece haver nos dois um mínimo de respeito pelo jornal (tanto aquele jornal específico como o meio de comunicação como um todo) ou pelo público. Os princípios do jornalismo que se danem. Sim, a coluna social historicamente não é exatamente a parte mais respeitada do jornal, mas continua sendo parte dele. JJ é rápido ao evocar o respeito para com seus leitores, mas sua noção de responsabilidade é, no mínimo, confusa. Que valor tem 60 milhões de leitores ao redor do mundo se JJ engana sem pudor a própria irmã? E o dever de informar os leitores com honestidade, clareza, transparência e ética, que deve ser tão forte no colunista de 60 milhões de leitores quanto no de 60? Mas talvez isso seja pedir demais. Talvez seja pedir demais também que um homem que tem uma praticamente uma biblioteca em seu apartamento (nada mais que a cobertura de um hotel nobre) tire algum de seus livros da prateleira e talvez aprenda alguma coisa sobre integridade (como se livros realmente pudessem tornar uma pessoa íntegra, mas enfim...). Ou que não faça de gestos nobres uma coisa rara. Rapidamente um desses gestos é transformado em enganação – ou seja, lucro – por Sidney, num dos momentos que melhor exemplifica o sarcasmo frio e cruel do filme.


JJ e Sidney passam o filme inteiro se surpreendo com a falta de escrúpulos um do outro num misto de admiração, sarcasmo e humor, enquanto tentam separar Susie, irmã de JJ, de Stevie, um músico de jazz que obviamente não é bom – ou rico, ou maleável, o que seja – o suficiente para ela, o que eventualmente eles conseguem. Mas não sem consequências trágicas. JJ se vê separado da sua irmã, e Sidney fica mais longe do sucesso do que quando começou a empreitada. A cena final, que determina o destino dos três, traz um triunfo amargo e ingrato para JJ. Em vez de atender à súplica de Sidney e contar a verdade – o que poderia o salvar -, Susie se cala, julgando que Sidney é merecedor de castigo, mesmo que injusto. Neste momento a menina de 19 anos se torna mais perto de ser irmã de JJ do que nunca, já capaz de entender que se faz jornalismo através da manipulação de informações – ou, no caso, o ocultamento delas. O plano de Susie passiva enquanto observa seu irmão espancar Sidney dura apenas alguns segundos, mas é um dos momentos mais tristes e de maior ressonância emocional do filme. Rapidamente ela se arrepende, e ouve um “Você está crescendo” de um Sidney já com a boca ensanguentada, o que soaria quase como um elogio ou um cumprimento se não fosse dito por um homem tão detestável. Susie sobrevive à Manhattan corrupta de A Embriaguez do Sucesso, mas nem sem manchar sua integridade e sua inocência de menina.

(V Janela Internacional de Cinema do Recife) O Sacrifício - Crítica



Como a humanidade pode sobreviver num mundo dominado e construído através de força, medo, desarmonia e falta de espiritualidade, sob a iminência de um apocalipse nuclear definitivo, uma guerra nuclear sem derrotados ou vitoriosos? A indagação de Andrei Tarkovsky por respostas resultou em O Sacrifício (1986), filme que acabou sendo seu testamento final. Tarkovski busca, desde o princípio de O Sacrifício, uma aproximação com formas de expressão artística ligadas profundamente à fé e à espiritualidade. Os créditos iniciais são marcados em imagem pela Adoração dos Magos de Leonardo da Vinci, uma pintura que retrata o nascimento de Cristo e a visita dos três reis magos a ele, e em som pela Erbarme Dich, trecho da Paixão Segundo São Mateus de Johan Sebastian Bach, um lindo pedido de piedade feito a Deus em forma de música. Em sua despedida do cinema, o diretor exprime sua resposta, e sua crença no poder da fé.

A narrativa é centrada em Alexander, um homem que desistiu da carreira de ator para se tornar jornalista. No dia de seu aniversário, ele é surpreendido com a notícia do início de uma guerra nuclear. Desesperado, Alexander busca ajuda em Deus, e promete a Ele sacrificar tudo que tem em troca da salvação. Alexander também é convencido pelo carteiro Otto a dormir com Maria – que segundo ele é uma feiticeira -, o que acabará com a guerra.

Em meio a tudo isso, o roteiro de Tarkovski acaba apresentando algumas de suas preocupações e ideias em relação a temas como religião, criação artística, espiritualidade e os rumos da civilização moderna, expressas com eloquência em seu livro, Esculpir O Tempo, e em diversas entrevistas ao longo dos anos. O Sacrifício pode não parecer tão abertamente autobiográfico quanto Nostalgia (1983) e principalmente O Espelho (1975), mas há no filme vários elementos que refletem a própria vivência do diretor se refletindo em detalhes que vão desde o corte de cabelo e o figurino de Adelaide – mãe de Alexander -, feitos para deixá-la parecida com a mulher de Tarkovski, Larissa, até a própria organização da família de Alexander e a arquitetura de sua casa.

A esta altura da carreira, Tarkovski parecia não sentir necessidade de seguir qualquer verdade ou qualquer vertente de ideias que não a sua, e não faz nenhuma concessão tanto em relação à estética do filme quanto ao seu conteúdo e o nível de pessoalidade que o impregna. Tarkovski pensava em seus filmes como poesias audiovisuais, obras que exigem um ato de criação tão pessoal quanto o de um escritor, compositor ou pintor. Essa pessoalidade e a maneira como ela é transmitida através da estética é a maior virtude do filme – e dos filmes do diretor como um todo -, mas também pode ser um defeito. Tendo Alexander como seu porta-voz principal, o diretor dá aos diálogos de O Sacrifício um tom mais filosófico do que de costume, dando às conversas um caráter forçado e não natural em certos momentos. Essa tendência dos personagens de filosofar, exprimindo ideias de uma forma mais clara que o necessário, causa certo choque entre a poesia sutil das imagens e a prosa das palavras.

Mesmo assim, permanece intacta a capacidade de Tarkovski de emocionar através de imagens belíssimas e oníricas. Para que isso ocorra, primeiro é preciso que o espectador entre em comunhão com a experiência que o filme proporciona, e principalmente com seu ritmo. Desde a primeira tomada – que dura quase dez minutos – deste que talvez seja o seu filme mais lento, Tarkovski impõe ao espectador um ritmo bem particular, convidando-o a perder a noção de tempo e participar da experiência com um misto de atenção e meditação. De certo modo, esse tipo de experiência se assemelha à visão de um espectador de teatro, onde o contato visual prolongado propicia uma sensação de maior realidade e autenticidade aos atos, apesar das atuações não possuírem uma teatralidade que Tarkovski abominava. Somos levados a adentrar o mundo interior de Alexander, transitando sem cerimônias ou avisos por entre sonho e realidade, ou uma mistura dos dois. A princípio fica clara a distinção entre realidade (cores) e sonho (preto e branco), mas conforme mais e mais cenas monocromáticas vão se seguindo, cada vez mais o mundo real parece se fundir com o dos sonhos, e fica a cargo do espectador decidir sobre o que realmente acontece no filme, já que os sonhos, apesar de possíveis de serem compreendidos, não “explicam” a narrativa. Realmente houve uma guerra nuclear, impedida por Alexander? Alexander realmente dormiu com Maria? Onde começam e onde terminam os sonhos? Quaisquer que sejam as respostas, essa linha tênue entre sonhos e realidade não torna o filme incompreensível. Pelo contrário, só reforça a dimensão onírica e poética de suas imagens, dando aos sonhos uma beleza de um jeito que só os filmes de Tarkovski conseguem.

Esta habilidade do diretor russo de passar para a tela com autenticidade o mundo dos sonhos foi o fator preponderante que levou o diretor sueco Ingmar Bergman a declarar que Tarkovski era o maior (ou mais importante) de todos os diretores. A admiração era mútua, e a influência de Bergman fica mais clara em O Sacrifício que em qualquer outro filme do cineasta russo. As filmagens foram realizadas na Suécia, perto da ilha de Faro, onde Bergman filmou grande parte de seus filmes. A equipe contava com alguns dos colaboradores frequentes de Bergman, com destaque para os atores Alan Edwall (Otto) e Erland Josephson (Alexander) e o diretor de fotografia Sven Nykvist, a quem Tarkovski se referiu como “aquele brilhante mestre da iluminação”. É particularmente notável o trabalho de Nykvist, que lhe rendeu um merecido prêmio especial em Cannes, e proporcionou composições belíssimas, entre elas o escurecer e clarear do quarto do filho de Alexander conforme as cortinas da janela balançam ao vento, o close em chiaroscuro de Maria, chorando em comoção com a estória de Alexander sobre sua mãe, e a visão do apocalipse em preto e branco de alto contraste, só para citar algumas. O Sacríficio também se aproxima de Bergman em sua temática, já que reflexões sobre fé, espiritualidade e a existência de Deus eram frequentes na filmografia do diretor sueco. Dito isso, talvez tenha faltado ao filme, ou mais precisamente ao seu diretor, uma habilidade tão nata quanto a de Bergman para tratar dessas e de outras questões deixando a psicologia de seus personagens fluir mais naturalmente.

Após o término das filmagens e antes que o filme ficasse pronto, Tarkovski foi diagnosticado com câncer de pulmão. Após a notícia, intensificou-se o impacto do filme, que passou a ser interpretado como um testamento final ao cinema, apesar dessa não ter sido a intenção de seu realizador. De fato, a parábola de salvação – tanto física quanto espiritual – através da dádiva do amor de uma mulher – no caso, Maria - e do sacrifício em nome da promessa feita a Deus ganhou ressonância após sua morte, e consegue emocionar profundamente – ainda que um número limitado de espectadores – até hoje. Fechando um ciclo que se iniciou com A Infância de Ivan (1962), que começa justamente com uma criança embaixo de uma árvore - esta já dotada de folhas -, a cena final de O Sacrifício quase torna possível ver o milagre do aparecimento de folhas na árvore seca – símbolo de uma vida renovada pela fé - através da luz brilhante refletida no mar, milagre que só se concretizará através da crença e persistência do filho, que teve sua palavra, fé e amor renovados pelo sacrifício do pai. Tudo pontuado mais uma vez pela música de Bach, dando à cena contornos ainda mais divinos, e uma dedicatória a Andriosha, filho de Tarkovsky que foi separado do pai por anos devido ao seu exílio. Como se o filme não pudesse ficar mais pessoal.

(V Janela Internacional de Cinema do Recife) Encaixe Gostoso



Começamos este programa “carinhosamente dedicado ao sexo” – como se ele pudesse ser dedicado a qualquer outra coisa com esse nome – de forma moderada, quase recatada. Café Regular (Ritesh Batra), uma co-produção entre Índia e Egito, retrata uma conversa entre um casal num café. Nada que fuja da normalidade, mas o fato da mulher ter ouvido um casal estrangeiro falando sobre sexo no trem de volta pra casa – até o ponto em que ela mudou de lugar de tanta vergonha – inicia no casal uma reação incomum. Num esforço perceptível, como se tivesse que brigar com ela mesma e os outros para liberar sua energia sexual reprimida, a mulher declara querer fazer sexo - coisa que em dois anos de relacionamento eles ainda não fizeram - com ele antes do casamento. Ele recusa a proposta inicialmente, chegando a ficar ofendido e envergonhado de ouvir aquilo da boca de sua futura esposa, e a alerta dos perigos de perder a virgindade – ou seja, o valor – antes do casamento. Mas ela o convence – ou melhor, o seduz -, tomando as rédeas da situação de um jeito incomum de se ver numa mulher de burka – acessório que, por sinal, ela insiste em manter durante o sexo -, e exige condições que se confundem entre a timidez e fetiche. Café Regular perde um pouco de seu impacto em meio ao crescendo de energia sexual do programa, mas convence em sua simplicidade, dando esperanças de que algum dia o desejo feminino não seja tão reprimido no Egito – e em tantos outros países – a ponto de uma mulher passar por tantos riscos ao querer fazer sexo com o noivo – após dois anos de noivado, é sempre bom lembrar -, enquanto o noivo declara sem ressentimentos que se fosse outra mulher – uma pra não casar – era só levar pra casa de um amigo e pimba, fácil, fácil.

Mike Sullivan, personagem principal do curta americano Os Robôs (Matt Lenski), também parece carregar dentro de si uma montanha de energia sexual, mas arranjou um jeito eficiente – pra não dizer peculiar – de controlá-la. Há 15 anos, Mike dedica sua vida a fazer um filme de robôs em stop motion. Pouco tempo depois teve a ideia de torná-lo um filme de sexo, uma ótima metáfora para os humanos, segundo ele. Mike guarda na parede algumas fotos de belas mulheres – amigas ou namoradas que nunca teve -, e é com um leve toque de tristeza que constata sua solidão. Mas Mike não tem tempo para ficar triste, já que construir todo aquele mar de pequenos robôs é a única coisa que ele consegue se ver fazendo. Chegam a ser hilários os momentos em que ele mostra - num tom que sugere ao mesmo tempo orgulho e auto-piedade - partes de sua interminável coleção de robôs: fêmeas e machos, cavalos e máquinas, muitos já empoeirados, todos construídos de forma a facilitar o sexo entre eles – e dá-lhe fuckable pussies e butts. Não se mostra quase nada do filme de sexo robô propriamente dito, mas a visão da imensidão orgiástica dos robôs de Mike já entrega a mensagem por si só.

Essa necessidade de descarregar energia sexual é uma coisa que os adolescentes que protagonizam Este Não É Um Filme de Cowboys (Benjamin Parvent) parecem longe de ter. A ação é focada em duas frentes: o banheiro masculino e o feminino, cada um com uma dupla, e em ambas o que repercute é a exibição do filme Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005) na TV na noite anterior. No masculino, Vincent resolve compartilhar a experiência de ver o filme com o amigo Moussa, e a cada frase sua é como se ele desafiasse e redescobrisse a sua própria sexualidade, ainda que ele raramente perca o medo de ter aqueles sentimentos – e principalmente expô-los – ou que outras pessoas fiquem sabendo daquilo. Essa necessidade de manter as aparências parece ser mais importante na adolescência que em qualquer outra fase da vida, e o filme demonstra bem isso quando outro menino aparece de repente no banheiro, e os dois param a conversa imediatamente e começam a agir de modo a não deixar que desconfiem de sua masculinidade. O impacto do diálogo das meninas é menor, já que não é a sexualidade delas que está em risco a cada reação, cada palavra. Enquanto Vincent sofreu para admitir sua empatia com os personagens – a ponto de chorar no final -, as meninas já admitem logo de cara que viram – e gostaram – do filme, e o único problema é o fato do pai de uma delas ser gay. Problema pequeno, aliás. O preconceito de uma com o pai gay da outra é exposto e até facilmente resolvido. O problema maior será de Vincent, que terá que lidar com a descoberta de uma sensibilidade nova, e com a aceitação de Moussa, já que Brokeback Mountain não é um filme de cowboys – pelo menos não heterossexuais -, afinal, mas a barreira pode ser posta entre ele o espectador está no preconceito de cada um, preconceito que até um adolescente é capaz de evitar, ainda que não pareça ser capaz de entender.

O curta Bonde (Michaela Pavlátova) retrata o que parece ser um dia rotineiro na vida de uma condutora de bonde. Ela entra no bonde, dá partida, o bonde passa pelas estações, entram nele homens idênticos com seus rostos sérios e suas capas cinzentas, os homens descem do bonde, e ela volta pra casa. A princípio, nada anormal. Mas por trás da condutora que os passageiros mal veem há uma mulher que faz questão de passar batom vermelho antes do expediente, e se contorce de prazer a cada entrada de um passageiro novo. Acompanhados pela música que marca de maneira ótima o ritmo pulsante do filme, entramos nas fantasias eróticas da condutora, que se contorce de prazer a cada passageiro que entra e a cada movimento de alavanca, se deliciando com a visão de uma infinidade de paus rosas saindo de cada passageiro, expondo cada vez mais o corpo para mostrar um par de seios generosos e olhos já marcados pelo êxtase. Infelizmente para a condutora, o espectador é o único que a acompanha, e ela termina sua fantasia de forma abrupta – quase batendo o bonde – e vergonhosa, já que o susto que o solavanco propicia aos passageiros é o único momento em que eles a notam, quando ela está assustada e quase sem roupas. Um dia ela encontra um passageiro de olhar tão tímido mas cheio de desejo quanto o seu. Ele a vê, e ela é finalmente saciada - no escuro -, dando um final feliz para essa divertida animação. Enfim uma expressão sem pudores do desejo feminino, um alívio nessa imensidão de peitos e bundas de mulheres alvos do desejo masculino que povoa a produção cultural mundial.

Surra de Pêia (Jean-Baptiste Saurel) é definitivamente um produto do cinema – e de seu imaginário -, principalmente dos filmes de kung fu e pornô. Mas este é um mundo diferente, como expressa a fala da personagem Sonia, que diz que os tempos de sexo desajeitado e preliminares intermináveis acabou, as zonas erógenas migraram, e o ponto alto do negócio agora é levar uma bela caceteada (ou surra de pêia), ganhando assim um orgasmo instantâneo. E o homem perfeito para o trabalho é o astro do pornô Ti-Kong, com seu pau hiperdesenvolvido, às vezes ocupando tanto espaço na tela que chega a ser egoísta. Quem não gosta da ideia é Francis, dono da locadora de filmes pornô em que a linda Sonia trabalha. Ele morre de desejo pela empregada, mas, inseguro em relação a seu pau, morre também de vergonha de se revelar. Mas isso muda quando Sonia aceita participar do próximo filme de Ti-Kong, e Francis precisa superar sua pequenez para salvá-la da monstruosidade de Ti-Kong. Permeando toda essa estória de redenção do homem de pau pequeno está um casamento feliz entre humor e sexo que diverte o espectador com uma mistura hilária de montagem fluida e diálogos rápidos, um amigo negro e engraçado que se torna quase um mestre de kung fu, um herói retraído que se revela mais forte que o vilão, uma mocinha que mistura luxúria e inocência, chinesas que não servem para nada a não ser apanharem e falarem coisas que ninguém entende, e uma tranquilizada básica aos homens que, como Francis, se sentem inseguros em algum nível com relação ao tamanho de seus membros, sejam seus rivais o absurdo Ti-Kong ou só o Ricardão.

É natural que, neste grande crescendo de energia sexual que é Encaixe Gostoso, o programa se encerrasse com Four Play: Tampa (Kyle Henry), um grande deboche cheirando a purificador de ar e esperma, um mais que outro. Este curta americano, como é de praxe, começa falsamente inocente e pueril, com um jovem – aparentemente latino – indo ao banheiro do shopping após um gorduroso prato de pizza, e se aliviando no mictório. O jovem espia os outros homens com olhos curiosos, no que remete à paranoia em relação ao tamanho do pacote abordada em Surra de Peia. Mas aos poucos a fachada e a discrição vão dando lugar ao desejo, e os homens passam a se masturbar e se chupar, até serem interrompidos pela entrada de mais alguém no banheiro. Numa sequência de cenas que chega a ser repetitiva, mais e mais visitantes vão entrando no banheiro e se juntando à brincadeira, deixando o protagonista cada vez mais nervoso e excluído. O filme se embebeda – até demais – em sua própria loucura transgressora, num crescente incontrolável que contamina todos os inúmeros convidados da orgia, desde Hitler até um travesti vestido de Carmem Miranda, menos o protagonista. Ele não participa do banho coletivo de esperma, e permanece desolado em seu vaso sanitário, até ser salvo por Jesus Cristo em pessoa – como era de se esperar -, que enfim lhe concede o divino orgasmo. O filme diverte – não sem deixar de ser previsível e exagerado em alguns momentos - através do choque, sendo a sua prova maior o fato de alguns espectadores terem aguardado alguns minutos antes de irem ao banheiro após o término da sessão – suponho que os realizadores do curta tenham um sorriso de triunfo ao saberem disso.

(V Janela Internacional de Cinema do Recife) Ao Sul do Meu Corpo



Monumento (Gregorio Grasiozi) começa num cinza absoluto – de muito mais tons que cinquenta -, com contornos pouco discerníveis. Imagens de linhas tortas em meio às sombras e o céu cinza vão se seguindo, partindo dos pormenores e detalhes para formar em sua totalidade o Monumento às Bandeiras, de Brecheret. Entre o barulho da metrópole se ouvem alguns cavalos relinchando, sons metálicos, passos, como uma trilha sonora da batalha de um filme que nunca foi filmado. Mas não há movimento, mesmo que a câmera se estenda no observar das esculturas a ponto de parecer acreditar que, se filmadas por mais alguns segundos, as rochas ganhariam vida. As rochas não adquirem vida nova, mas recebem dos espectadores um olhar renovado, proporcionado pela câmera que contempla amiúde os seres esculpidos em pedra como se fizesse deles personagens de um filme. Através da bela fotografia em preto e branco, o Monumento é situado enfaticamente em meio à metrópole cinzenta - mostrada claramente apenas nas últimas tomadas -, intrínseco ao espaço urbano de São Paulo. A obra e a cidade, indivisíveis.

A sinopse de Salamaqats (Andrés Schaffer) já adianta: “As ruas e um mistério”. Assim como Monumento, este curta se utiliza de uma dramática dissociação entre imagem e som, mas de forma contrária. Enquanto em Monumento a câmera passeia ao redor de objetos imóveis a fim de estudá-los em seus mínimos detalhes, em Salamaqats a câmera observa pessoas dançando em ritmo frenético sem proximidade, quase passivamente. E se Monumento atribui aos objetos inanimados sons que eles não podem produzir, Salamaqats tira do registro dos dançarinos a música que os fez dançar, nos dando apenas ruídos de cidade que são os mesmos em Belo Horizonte, São Paulo, Recife e Nova Iorque. De início, fica até difícil saber o que se passa na tela. Ao mostrar dançarinos de rua sem a música que provoca neles a dança, Salamaqats destitui parte do sentido contido naquele ato, ao mesmo tempo em que possibilita a atribuição de novos sentidos e percepções. O que os faz dançar, afinal, numa atividade que parece até uma resistência à paisagem, cheia de pessoas a ir e vir como se fossem todas originadas da mesma fábrica? O mistério permanece. E estranhamente, Salamaqats causa um distanciamento em relação ao espectador maior que Monumento, apesar de lidar com pessoas, e não esculturas.

Animador (Cainan Baladez e Fernanda Chicolet), por sua vez, é protagonizado por Lídia, que trabalha num parque de diversões fantasiada de coelho, esperando para ser jogada numa piscina pelo arremesso infeliz de uma criança. Ela parece achar ridículo o seu uniforme de trabalho, mas resiste quando um colega propõe que ela seja um leopardo por um dia. Sem a fantasia de coelho, se mostra tímida e desajeitada, sem cuidados com a aparência. Quando enfim troca de fantasia, parece não saber o que fazer. Quando lhe dão outra fantasia, parece desajeitada e fora de lugar, como que no corpo de outro. Quando lhe pedem pra que tire apenas a cabeça de coelho, então... crises e crises de identidade. Animador mostra a jornada diária de Lídia sem tanta originalidade, mas guarda algumas doses de bom humor, e um trunfo ainda maior: cenas de sonho sem distinção clara ou aparente da realidade. Um parque de diversões, hábitat de Lídia, não é um mundo fantasioso, afinal?

Vestido de Laerte (Claudia Priscilla e Pedro Marques), ao investir no potencial de personagem da figura de Laerte, consegue apenas retratá-lo de forma divertida, mas pouco intrusiva. Laerte é filmado em toda a graça e elegância de seu “travestismo”, e sua feminilidade é prontamente abordada, mas como que através de um filtro. Laerte olha pra câmera e sorri, parecendo ser protegido pela máscara das aparências – além da pesada maquiagem -, e a falta de intrusão além dessas aparências resulta num personagem que encobre seu corpo tanto quanto sua alma. Vestido de Laerte anda em círculos e auto-referências – presentes em várias das cenas de humor – sem penetrar no universo de seu personagem, mantendo uma distância segura e não expondo-o além daquela camada de conhecimento que sempre parecemos ter de nossas figuras públicas.

Com Orwo Foma (Karen Black e Lia Letícia) voltamos a um jogo de dissociação entre imagem e som, desta vez em nível equivalente de ruído. Duas pessoas – uma branca e uma negra, quase irreconhecíveis por baixo de tanta maquiagem – passam cremes e shampoos, e entre os ruídos se ouvem anúncios publicitários afirmando a beleza feminina (“Tudo é lindo numa mulher”). Mas as imagens se opõem ao som de forma violenta, e o que se vê é deterioração e distorção. Mesmo com seu posicionamento político forte e claro, Orwo Foma parece estar tão longe da realidade – e ao mesmo tempo perto do experimentalismo e da videoarte - que, apesar de pôr em evidência as contradições e a artificialidade da indústria da beleza, falha em – ou esquece de - propor novos caminhos de forma enfática o suficiente ao não mostrar efetivamente sua própria visão do que é belo numa mulher. Não peço que se mostrem pernas, seios e rostos ligeiramente diferentes do que os padrões de beleza ditam, como fazem algumas propagandas de valorização da “real” beleza feminina. Apenas pés. No chão.

O programa é fechado com A Dama do Estácio (Eduardo Ades), uma homenagem ao filme Falecida (Leon Hirszman, 1965) – ambos estrelados por Fernanda Montenegro. A atriz, com o talento que lhe é peculiar desde 1965, interpreta com maestria a prostituta Zulmira, que um dia acorda obcecada com a ideia de que vai morrer e de que precisa de um caixão. Fernanda se expõe tanto física quanto emocionalmente para dar vida a uma personagem contraditória, que parece entrar em depressão ao constatar que não pode mais exercer sua profissão da mesma maneira devido à idade, mas ao mesmo tempo não abdica de certos prazeres terrenos, como uma mesa de bar, uma noite de amor, um banho de chuva. Entretanto, falta tempo e eficiência para o desenvolvimento do filme como um todo e principalmente dos personagens secundários, e A Dama do Estácio termina duvidoso, sem afirmar com convicção a necessidade de sua homenagem.

(V Janela Internacional de Cinema do Recife) Interior e Exterior



Começamos o programa com uma bela tomada aberta da serra que dá título ao filme Serra do Mar (Iris Junges). O som da mata proporciona uma imersão do espectador naquele ambiente, mas o visual dá uma ideia de intrusão devido à presença de um casebre no meio da mata, habitado por um homem solitário. Esta casa só não é mais intrusa que as torres de energia que estão sendo instaladas na Serra, torres que Jonas tem como trabalho vigiar através de uma série de câmeras e monitores. Houve um incêndio na mata que chegou a ser captado por uma câmera, e a busca pela descoberta da causa deste incêndio obceca Jonas. A alternância entre planos estáticos da mata, além de sugerir uma vigilância constante, de certa forma equipara o olhar de Jonas – cercado de computadores, habitando quase uma mini-cidade dentro da mata – com o das câmeras, iguais em sua incapacidade de realmente penetrar a Serra. Assim como as câmeras e os cabos de energia que ele tanto guarda, Jonas nunca realmente fará parte da mata, e, ao se deparar com essa incapacidade, reconhece que sua tarefa é observar, e só observar. Ao contrário do homem que mora na mata, e o conflito entre os dois - também um conflito entre um olhar de dentro e um de fora - é o que dá força ao filme. No fim, a narrativa ainda conserva algum nível de mistério, como a própria Serra do Mar.

Voltamos à mata, mas é uma mini-mata dentro da cidade, uma mata que já não guarda qualquer mistério. Estamos agora no parque do Ibirapuera, no filme Dois (Thiago Ricarte), centrado nos adolescentes Thalita e Rafael. Adentramos o universo próprio dessa fase da vida e observamos algumas de suas particularidades, como os estudos na véspera de prova, a preocupação com as notas, as paixões não-declaradas, coisas típicas daquela fase em que já não se é mais criança, mas a infância ainda mantém alguns resquícios, como fica mais evidente em uma fala de Thalita. A narrativa se desenvolve de maneira até despretensiosa, dando tempo para que os dois atores – de bom entrosamento – estabeleçam a relação entre seus personagens aos poucos. A câmera os segue, e entre uma tomada de steadicam e outra pode-se ver a luz aumentando e diminuindo conforme as nuvens se movem por sobre as árvores do parque. Rafael parece só se sentir bem perto de Thalita, e fica nervoso quando ela se distancia, ou quando percebe que o que antes era um estudo a sós com Thalita se torna um estudo em grupo. Sem dar atenção demais à parte técnica, Dois retrata de forma espontânea – difícil de se encontrar quando se mostram adolescentes - a busca de Rafael em se aproximar de Thalita, apesar de um distanciamento que parece ser natural mas que não é totalmente compreendido por ele, e de torná-los, enfim, um par.

Também há um certo distanciamento entre as pessoas-personagens que dão título a Luna e Cinara (Clara Linhart), apesar da sua natureza não ser clara. A chegada de Clara parece acionar um grau natural de teatralidade e artificialidade normal de quem se vê de frente a uma câmera. Ao estarem na presença de uma câmera-testemunha, é como se elas tentassem ao máximo ter um dia normal, mas melhorado, mais interessante, ou simplesmente fazer um filme melhor que Laura (Felipe Adami), dirigido pelo companheiro de Clara. Mas o fato da pessoa por trás da câmera ser Clara, neta de Luna, muda tudo, dando ao documentário um tom mais íntimo, caseiro – no melhor sentido possível da palavra. Isso possibilita um relaxamento maior das duas, que vão brincando e conversando com Clara enquanto seguem sua rotina de tomar café, ir ver um filme no cinema, ir ao restaurante. A presença de Clara também é essencial para o momento mais sublime do filme, quando Luna aproveita a ida de Cinara ao banheiro para fazer uma confissão que comove o espectador com sua espontaneidade. Luna chora, expressando sua tristeza por estar sozinha. Clara intercede, lembrando de Cinara, companheira de todas as horas. Mas por mais que Cinara seja presenteada com sapatos, bolsas e robes, ela nunca será do mesmo sangue, e para uma mulher que já teve sua casa habitada por filhos, netos e oito empregados, a solidão parece natural, inevitável. O que não impede que haja entre as duas uma relação de amizade, respeito e afeto além da de serventia, e o curta consegue transmitir essa mistura de sentimentos – principalmente amizade - com sucesso, sendo essa sua maior virtude. Ao final, o que fica é o abraço de Cinara e Luna, e o olhar carinhoso e quase inocente das duas mulheres.

Olhos inocentes – de menina e de boneca - ainda nos acompanham, mas agora estamos num quarto de menina, e não no Leblon. Quem faz companhia à criança são suas bonecas, brinquedos, e adereços típicos de um quarto de menina. Nada que pareça aterrorizante em uma situação normal, mas, desde os créditos iniciais de Menina da Boneca (André Pinto), não há dúvidas de que estamos vendo tudo aquilo sob a ótica do cinema de horror. Ao som de uma trilha sonora característica do gênero, um simples ventilador de teto parece ameaçador, os olhos das bonecas parecem observar entre as sombras, e acreditamos que talvez, se um close durasse uns segundos a mais, veríamos um brinquedo sair andando. Tudo para fazer um quarto confortável parecer um ambiente hostil – de certa maneira justificando o desejo da menina de dormir com o abajur ligado. É a imaginação - preciosa tanto ao universo infantil quando ao do cinema de horror - que permeia o filme, interessando a plateia e dando vida ao corpo de uma boneca. Nos tornamos crianças que, na hora de dormir, olham por debaixo da cama procurando o bicho-papão – ou algum outro monstro qualquer -, ao mesmo tempo querendo e não querendo acreditar, olhando por alguns segundos a mais só para ter certeza. A menina pode até sair do pequeno espaço de seu quarto – apesar de isso não ser mostrado -, mas fica a questão: quando ela sairá de seu mundo de sonhos e pesadelos?

Continuamos num quarto de criança povoado de brinquedos do chão ao teto, mas quando chegamos a Menino do Cinco (Marcelo Matos de Oliveira e Wallace Nogueira), parecemos sofrer um choque de realidade. Enquanto a menina do curta anterior habitava um mundo de sonho (ou pesadelo?), Ricardo habita um mundo real, às vezes real demais pra ele. Não lhe faltam brinquedos, mas o relacionamento distante com o pai e a ausência de amigos torna seu apartamento de classe média quase uma prisão. Téo, outro menino, é livre para vagar pelas ruas e praças de Salvador, mas não tem teto. Sua única posse é um filhote de cachorro amarelo, que, por descuido de seus amigos, vai parar justamente no jardim minúsculo do prédio de Ricardo. Ricardo, ganhando tão inesperadamente um amigo que tanto lhe faltava, foge para seu refúgio no quinto andar, ganhando uma válvula de escape da realidade e o amigo que tanto lhe faltava. Mas o cachorro não pode ser seu, e as tentativas de Téo de recuperar o cachorro impedem Ricardo de sonhar. Como é singular o mundo à parte em que vivem as crianças, no qual Ricardo se torna capaz de abdicar de tudo o que tem e Téo de desejar esse tudo de Ricardo por um simples cachorro. Simples, mas cuja valorização parece variar entre o tudo e o nada para os personagens conforme a narrativa se desenrola. O desfecho do curta, totalmente inesperado, só vem a confirmar que é impossível realmente entender o interior da mente de uma criança.